MCCafiero

Olá! Aqui, você encontra reportagens e entrevistas que fiz para o jornal Correio Popular, de Campinas, onde trabalhei como repórter na editoria de cultura entre 2000 e 2009, e textos produzidos pelo simples prazer de escrever. Boa leitura e comente!

segunda-feira, 20 de setembro de 2010

arte faz parte: O FIM DE UMA ILUSÃO

Mas tem de avisar os seguranças contratados da Bienal q algumas obras são interativas e q, portanto, o público pode tocar, entrar, vestir...

sábado, 19 de setembro de 2009

30 anos de artes visuais


Estou participando de um projeto de artes visuais intitulado 79>09, que compila 30 anos de produção artística nas cidades de Campinas e Ribeirão Preto. Com apoio do Ministério da Cultura (MinC) e produção do Ateliê Aberto Produções Contemporâneas e Direção Cultura, o projeto é uma iniciativa do portal EPTV.com em comemoração aos 30 anos das Emissoras Pioneiras de Televisão, da Rede Globo, em Campinas.

A minha função no projeto é entrevistar os artistas mais importantes de cada década e acompanhar o trabalho dos curadores envolvidos com a seleção das obras e montagem de duas exposições que serão realizadas em novembro deste ano, no Museu de Arte Contemporânea de Campinas "José Pancetti" (Macc) e no Museu de Arte de Ribeirão Preto "Pedro Manuel-Gismondi" (Marp).

O conteúdo gerado nesse processo está sendo postado no blog 79>09 (AQUI) e, posteriormente, será inserido em um hot site no portal da EPTV, com reportagens, entrevistas maiores e colaboração de críticos e especialistas, criando um patrimônio imaterial sobre as artes visuais das duas cidades.

A obra ao lado faz parte da nova série de pinturas sobre o grupo extremista alemão Baader Meinhof, do artista Fábio De Bittencourt, pertencente à geração 90, que produz a partir de Campinas.

Leia, abaixo, texto de apresentação do projeto 79>09:

79>09 – 30 anos de artes visuais em Campinas e Ribeirão Preto

Como se deu o desenvolvimento da produção em arte contemporânea nas últimas três décadas nas cidades de Campinas e Ribeirão Preto, no Estado de São Paulo, e como ela se projeta no século 21? Pela primeira vez em ambas as cidades será feito o levantamento das artes visuais nos anos 80, 90 e 2000 por meio do mapeamento de artistas representativos da arte contemporânea, com carreiras nacionais e internacionais, e a realização de duas grandes coletivas com as obras mais emblemáticas, no final do ano.

Campinas, irá trabalhar nos acervos do Museu de Arte Contemporânea de Campinas “José Pancetti” (Macc) e do Museu de Arte de Ribeirão Preto Pedro Manuel- Gismondi (Marp), além dos acervos dos próprios artistas – e de outras instituições – a fim de selecionar as obras mais marcantes de cada período, que estarão nas duas exposições históricas a serem inauguradas em novembro, no Macc e no Marp.

Além da preservação da memória, o projeto 79>09 pretende revelar o desenvolvimento das artes visuais entre o final do século 20 e início do 21 nas duas cidades, as diferentes linguagens e suportes utilizados nas obras e as possíveis trocas e influências entre as gerações de artistas.

Outra inovação do projeto é a utilização do conceito de transmídia, que é a intersecção entre diferentes meios de comunicação, que serão utilizados para expandir o processo de pesquisa e a criação de um patrimônio imaterial, além de um diário de produção que pode ser conhecido e acessado por qualquer pessoa, criando uma interlocução entre curadoria, artistas e público.

No portal EPTV.com serão postados textos, entrevistas, reportagens, vídeos e making of do projeto. Por meio de plataformas livres de comunicação, as pessoas também poderão participar da coleta de informações sobre cada período, sugerindo fontes e artistas. A TV aberta também poderá servir de suporte para inserções do projeto.

Com realização da Direção Cultura e Ateliê Aberto e apoio do Ministério da Cultura (MinC), o projeto 79>09 é uma ação da EPTV.Com para marcar os 30 anos da EPTV, e tem início agora.




sexta-feira, 18 de setembro de 2009

A vida se refaz




Quem vai pelo título se engana. "Uma Vida Entre Três Cachorros" (A Three Dog Life, Editora Planeta, 1ª edição, R$ 29,90, em média), da escritora norte-americana Abigail Thomas, não tem nada do que o título promete. Ainda bem! O que me atraiu ao livro, confesso, foi a bela fotografia que Jennifer May fez de uma senhora sentada em um sofá, entre seus três cães, como se esperassem a tarde passar.

Ao ler a sinopse, compreendi a expressão um tanto melancólica daquela senhora – na verdade, a própria escritora – que é quem aparece na fotografia. Longe de ser um relato sobre a vida com os cães, Abigail registrou suas memórias sobre a vida com o marido, um repórter chamado Rich, antes e depois dele ser atropelado quando corria atrás de um dos cachorros, no final dos anos 90.

Após o acidente, Rich perde a capacidade de reter a memória mais recente, torna-se paranóico e passa a morar permanentemente em clínicas de reabilitação. Apesar da terrível fatalidade, Abigail descobre um tipo de sintonia que está além da razão com o seu marido, a quem conheceu aos 46 anos de idade – ele com dez anos a mais do que ela – após publicar um anúncio na seção de relacionamento de um jornal, e com quem se casou apenas 13 dias depois do primeiro encontro.

Com casa na cidade de Woodstock, em Nova York, mãe de quatro filhos e avó de cinco netos, Abigail segue fiel à rotina de lecionar ficção na New School, escrever seus livros – ela é autora da autobiografia “Safekeeping”, de um romance e duas coletâneas de contos –, e visitar Rich periodicamente na clínica.

Não pense que, pelo resumo acima, “Uma Vida Entre Três Cachorros” é uma história indigesta, pesada. Pelo contrário, apesar da dor que Abigail sofreu e ainda deve sofrer e da saudade do companheiro – com quem estava casada havia 12 anos antes do acidente – a escritora consegue imprimir bom-humor e esperança nas 173 páginas de suas memórias.

Em nenhum momento de suas memórias ela demonstra autocomiseração ou revolta – com exceção do capítulo em que escreve sobre culpa. Ao aceitar a mudança de percurso, ela se dedica a desvendar a mente de pessoas com lesões cerebrais e se torna voraz consumidora de obras da chamada Arte Bruta –, que, como explica a autora em um capítulo dedicado somente a esse tema: “se refere a artistas autodidatas, muito frequentemente são pessoas que se mantêm à margem da sociedade, mas cujas raízes estão na arte do insano; foi inicialmente identificada na Europa no fim do século 19 e depois celebrada na primeira metade do século 20 pelo artista Jean Dubuffet, que a chamou de arte bruta, arte crua”.

Além de novos hobbies e rotina, Abigail aprende a “fazer uso da solidão em abundância para tirar algo de útil da catástrofe”. Observadora atenta do comportamento das pessoas, dos cães e das mudanças na paisagem, ela faz um relato aguçado da própria velhice, de como a mente humana se reorganiza após um trauma, de como tocar a vida com sua família de três cães e de como banir a melancolia por meio de situações e atividades aparentemente banais, mas que dão bastante significado à existência.

“Uma Vida Entre Três Cachorros” foi apontado como um dos melhores lançamentos de 2006 pelos jornais LA Times e Washington Post.

TRECHOS*

“Você precisará de três cachorros, um dos quais detectou o cheiro de alguma coisa interessante saindo pela janela do segundo andar. Ela é um cão de caça. Todos eles são cães de caça, e vocês quatro dormem juntos em uma cama de casal. Quando você abre os olhos (o hálito canino morno dela sobre sua face), ela a está encarando com tal intensidade que você vai morrer de rir. Você veste roupas da véspera (que estão esticadas convenientemente no chão) e encaminha-se escada abaixo sem tropeçar em Rosie, Harry ou Carolina, que estão sempre no meio do caminho. Quando você abre a porta da cozinha, eles voam para o quintal e imediatamente começam a caçar, focinhos rente ao chão, alguma pequena criatura cujo rastro em ziguezague assemelha-se a um eletrocardiograma. Você os segue no gramado verde molhado. Agora você está ao ar livre, e são cinco da manhã.”

“No começo da tarde o sol pode queimar através da névoa, e se você não se maravilhar com isso, não se irrite. De qualquer maneira, está na hora de um cochilo. Do lado de dentro, você pode notar que aquilo que pensou ser pó é, em vez disso, uma camada de pólen dourado que entra pelas janelas abertas. ‘Se pelo menos a vida fosse mais desse jeito’, você vai pensar quando se encaminhar com os cachorros para a cama, e então perceberá com um sobressalto que isso é vida.”

“Além disso, estou bastante bem sozinha. Nem sempre quero responder a uma pergunta sobre por que estou tossindo, se eu estiver tossindo. Gosto de ficar absorvida por Return to a Place Lit By a Glass of Milk sem que me perguntem o que estou lendo. Aprecio não ser interrompida quando não estou pensando em nada. Ninguém espanta meus cachorros para fora do sofá ou impõe restrições aos três, que peidam à noite, com cheiro de sardinha, debaixo das cobertas da cama. Gosto de mudar a mobília ao redor sem ninguém para desejar que eu não o faça ou não notar que eu o fiz. Gosto de cozinhas ou não, arrumar a cama ou não, capinar ou não. Assistir a filmes até as três da manhã sem ninguém reclamar. Sem falar dos cochilos.”

Extraído do livro "Uma Vida Entre Três Cachorros", de Abigail Thomas (Editora Planeta)

sexta-feira, 14 de agosto de 2009

Alguém precisava recontar essa história


O ano é 1962, no Brasil, mas poderia ser hoje e em qualquer lugar. Corpos com claros sinais de tortura, muitas vezes nus e sem qualquer identificação, começam a aparecer, dia após dia, boiando em dois importantes rios da Cidade Maravilhosa. Que risco aquelas pessoas ofereciam? A que grupo elas pertenciam? Ou o que teriam testemunhado que ninguém mais poderia saber?

É bom lembrar que, há 47 anos, estávamos no período da pré-ditadura militar de direita no Brasil, e que a Baía de Guanabara era governada pelo jornalista Carlos Lacerda (1914-1977), que mantinha no Rio de Janeiro o Serviço de Repressão Mendicância, órgão responsável por regular o fluxo e permanência de mendigos nas ruas da capital fluminense, e que, naquele ano, tratou de cuidar que a cidade ficasse livre de moradores de rua, usando como desculpa a possível visita da rainha da Inglaterra – coisa que aconteceu somente em 1968.

O fato é que a operação desencadeada pelo órgão que deveria repreender a mendicância durante a vinda da monarca ao Brasil entrou para a história como Operação Mata Mendigo, pois a forma encontrada para a “limpeza” das ruas do Rio foi afogar os moradores de rua nos rios Guandu e da Guarda. A aparição dos corpos em curtos intervalos de tempo chamou atenção da imprensa, que começou a investigar o caso e a estampar manchetes acusando o governo de extermínio.

Além das capas de jornal, essa história ganhou os palcos com a peça Topografia de um Desnudo, escrita pelo chileno Jorge Diaz (1930-2007), que foi montada pela primeira vez no Brasil somente em 1985, pela diretora paulistana Teresa Aguiar, com o Grupo Rotunda, sobre tradução de Renata Pallotini.

Este é apenas um prólogo para a crítica ao filme homônimo, que a própria Teresa Aguiar, 14 anos depois de encenar a peça, a muito custo, finalizou. Foram cerca de cinco anos de trabalhos intensos, rodando em Campinas, Paulínia – onde estreou o Pólo Cinematográfico – e Rio de Janeiro, com elenco formado por grandes nomes do teatro e do cinema como Maria Alice Vergueiro, Lima Duarte, Ney Latorraca e José de Abreu, e um elenco de apoio que ela ajudou a formar em oficinas de cinema realizadas em Campinas, além de revelações maravilhosas como a atriz Ariane Porto, que protagoniza a história e ainda se dividiu no roteiro e na produção do longa.

Com proposta ousada, que mistura as linguagens do documentário e da ficção, e técnicas como o Super-8 e a câmera digital, Teresa Aguiar realizou uma obra de arte sobre uma história indigesta: a matança de dezenas de mendigos no começo dos anos 60, consentida pelo Governo da Baía da Guanabara.

No ano seguinte ao aniversário de seis décadas da Declaração Universal dos Direitos Humanos – pouco lembrado no ano passado -, Teresa Aguiar, aos 74 anos de idade, insiste em jogar esse problema de volta no nosso colo, estejamos sentados nas poltronas do teatro – em 2008, ela voltou a encenar a peça de Jorge Diaz - ou do cinema, a fim de nos alertar sobre a morte de moradores de rua nas grandes cidades, seja ela provocada por grupos de extermínio, jovens inconsequentes ou pela falta de políticas públicas.

Neste que é seu primeiro longa-metragem adulto de ficção, Teresa juntou à história romanceada por Jorge Diaz depoimentos recentes de jornalistas que testemunharam e noticiaram o extermínio de mendigos no Rio. Às imagens fictícias, ela misturou flashes dos corpos desnudos, em fotos em preto-e-branco pinçadas dos arquivos da imprensa fluminense.

A trama se passa em dois planos: na consciência do mendigo Russo (Lima Duarte) e da jornalista Bel (Ariane Porto), que são os narradores; e na realidade. Em um lixão da cidade, perto de um dos rios onde os corpos começam a aparecer, um grupo de mendigos aparentemente organizados, que sobrevive catando sobras de comida e reciclando lixo. O Serviço de Repressão à Mendicância (representado aqui por Ney Latorraca e José de Abreu) detecta ali que pode ser um núcleo comunista, representado por Russo – apelido muito suspeito para a época – único mendigo alfabetizado do local.

Quando os corpos começam a aparecer, uma colunista social de um importante periódico do Rio se sensibiliza com o caso e solta uma nota de repúdio à violência, o que causa um incidente “diplomático” entre o governo e a direção do jornal. De um extremo ao outro da pirâmide social, tanto Russo quanto Bel passam a ter os passos seguidos por funcionários do governo.

A roteirista Ariane Porto pouco mexeu na história original, contada de maneira bem encadeada, sem perder o ritmo – tanto que é um filme curto para os padrões atuais: tem cerca de uma hora e meia de duração. A mão da diretora Teresa Aguiar aparece com força na forma com que filma e na direção dos atores, que brilham em cena, em atuações surpreendentes – com destaque para Maria Alice Vergueiro, que faz uma divertida cafetina que mora no lixão.

Esta não parece ser a estreia da diretora em um longa adulto. Teresa tem estilo. Ela utiliza uma paleta de cores em cada plano em que se passa a história e elementos surrealistas para diferir as dimensões em que as personagens aparecem. O recurso intercala momentos poéticos em meio à densidade da trama.

O Rio de Janeiro filmado por Teresa também foge dos clichês. Interessante observar que a câmera Super-8, quando percorre a Avenida Atlântica a bordo do carro das personagens, na orla de Copacabana, nunca se volta para o mar. Prefere mirar as fachadas chiques dos edifícios à beira-mar, fazendo o contraponto com os barracos dos mendigos no lixão.

Destaque também para a pesquisa histórica e a direção de arte, que fez um belo trabalho de reconstrução da época, por meio de figurino, móveis, objetos e automóveis; além da fotografia de Carlos Ebert – de O Bandido da Luz Vermelha (1968), de Rogério Sganzerla – e trilha sonora.

Definitivamente, Topografia de um Desnudo é um filme que incomoda e surgiu com esse objetivo. Com certeza, não deverá estrelar nos complexos de cinema, nem será assistido por quem vê um filme apenas como entretenimento, mas falará fundo àqueles que se interessam pela história recente do País e às organizações e instituições que lutam pela dignidade das pessoas em situação de rua.

sábado, 18 de julho de 2009

O tempo do preconceito


Quem é capaz de continuar admirando alguém que se revela intolerante com as diferenças? Talvez o amor resista até o preconceito entrar em cena.

Questões assim são tratadas com delicadeza e beleza no segundo longa-metragem do diretor Roberto Moreira, Quanto Dura o Amor?, exibido pela segunda vez este ano – a primeira foi no dia 11 de julho, no Festival de Cinema Latino-Americano de São Paulo –, no 2º Festival Paulínia de Cinema, no dia 12 de julho, saindo premiado duas vezes na categoria melhor atriz para Silvia Lourenço e para a estreante no cinema Maria Clara Spinelli, conhecida dos palcos paulistanos.

Moreira estreou em 2004, com o filme Contra Todos, que guarda semelhanças com o novo projeto nos encontros sexuais explosivos entre personagens díspares. Assim como aquele trazia um matador de aluguel atraído por uma evangélica e um negro por uma adolescente branca, Quanto Dura o Amor? acompanha três relacionamentos que também desafiam preconceitos em relação a gênero, raça e profissão.

O roteiro escrito por Anna Muylaert (Durval Discos) e Roberto Moreira gira em torno da atriz Marina (Silvia Lourenço, foto), que disputa o amor da cantora de rock Justine (Danni Carlos) com o dono de bar Nuno (Paulo Vilhena); da advogada Suzana (Maria Clara Spinelli), que guarda um segredo importante do pretendente Gil (Gustavo Machado); e do escritor nerd Jay (Fábio Helford), que é obcecado pela prostituta Michelle (Leilah Moreno).

São Paulo é o lugar para as histórias que se intercalam. Em muitas cenas, a cidade é captada de cima do Condomínio Jaqueline (que daria nome ao longa, não fossem as mudanças no roteiro), na Avenida Paulista, próximo à Avenida Consolação, onde moram Marina, Suzana e Jay. Com ênfase nas cenas noturnas, o diretor de fotografia Marcelo Trotta conseguiu transformar o cenário em mais uma personagem na trama, capaz de influenciar, com seu ritmo, cores e sons, o humor e as decisões das personagens.

A trilha sonora, assinada por Livio Tragtemberg, é outro elemento que dá força à trama, ao assinalar o sentimento das personagens. Para além da música originalmente composta, a produção também apostou em uma pérola do pop internacional para abrir o filme: a canção High and Dry, da banda Radiohead, que assistiu ao filme antes de liberar a música que integra o álbum The Bends (1995). A música também aparece também na voz de Danni Carlos ao violão.

Mais do que histórias de amor, o filme nos coloca dilemas importantes a serem resolvidos intimamente e também publicamente, e revela que a entrega amorosa depende da capacidade do ser humano se maravilhar, mais do que se assustar, diante do novo.

sexta-feira, 17 de julho de 2009

Enquanto a vida não vem


Heitor Dhalia surpreende no terceiro longa-metragem, À Deriva (Brasil/Estados Unidos), com uma história de emoções sutis na superfície e conturbadas mais ao fundo, que pede a colaboração do espectador na construção do drama que vive a personagem principal, a adolescente Filipa (Laura Neiva). Talvez a única semelhança que tenha com Nina (2004) e O Cheiro do Ralo (2006) – longas anteriores de Dhalia – seja o foco em personagens que sofrem de inadequação social.

Primeira produção internacional do diretor e roteirista brasileiro, À Deriva narra conflitos íntimos, que vêm de fontes variadas: da passagem de Filipa para a vida adulta, da descoberta do sexo, das traições protagonizadas por seus pais – brilhantemente vividos pelo ator francês Vincent Cassel (de Irreversível) e por Débora Bloch – e das consequentes violações verbais e emocionais provocadas por ambos.

O cenário não poderia ser mais adequado a esse drama familiar com gosto de tragédia anunciada: o mar, tão sedutor e traiçoeiro quanto qualquer promessa de amor eterno ou família plenamente feliz. Ambientada nos anos 80, em Búzios, no Rio de Janeiro, a história – escrita por Dhalia com a diretora paulistana Vera Egito – acompanha as férias atribuladas de uma família classe média alta.

À primeira vista, tudo parece em harmonia, mas os belos rostos guardam mágoas profundas, que vêm à tona em forma de ressaca, e isso não é apenas uma metáfora. Clarice (Débora Bloch) é uma professora em crise com o casamento que gerou duas meninas, um garoto e muitas dúvidas em relação ao marido, o escritor francês radicado no Brasil, Mathias (Vincent Cassel, que fala português). O uísque passa a ser o antídoto para o tédio, enquanto o marido busca inspiração para o novo romance em outra mulher (Camilla Belle).

Assim como no filme O Piano (1993), de Jane Campion, Dhalia revela a crise do casal por meio do olhar de Filipa, que perde os últimos traços da infância e descobre o sexo ao testemunhar a traição do pai. Solitária em suas descobertas, a garota devolve a angústia em forma de crueldade para com os amigos e de precocidade sexual, ao decidir se entregar a um homem mais velho.

Outras semelhanças com o filme de Campion aparecem na relação dos protagonistas com o mar – À Deriva começa e termina dentro d’água – e na trilha sonora, composta originalmente por Antonio Pinto, com piano e cordas, lembrando um réquiem. Daí a sensação de tragédia iminente que perpassa todo o filme.

A beleza da menina se tornando mulher em meio ao cenário paradisíaco de Búzios e Cabo Frio (onde foram rodadas algumas cenas) cresce com a fotografia de Ricardo Della Rosa, que faz o contraponto entre a adolescente solar e os pais crepusculares. Essa contraposição também é realçada pela câmera quase epidérmica de Dhalia, que resvala nos cabelos ao vento e na pele dourada de Filipa, assim como nos vincos de mágoa dos pais e nas sombras interiores da casa de praia.

Apesar de bem mais maduro como cineasta, Dhalia ainda é capaz de escolhas perigosas, como pela estreante Laura Neiva para protagonizar essa história densa e delicada, mas que aqui faz todo o sentido. Afinal, em um filme sobre a inconstância das relações humanas, o excesso de profissionalismo poderia não nos convencer da fragilidade da personagem. Aliás, a espontaneidade parece ter sido um elemento desejado pelo diretor, pois ela marca todas as interpretações.

Aplaudido por cinco minutos no 62º Festival de Cannes, em première mundial na mostra paralela Um Certain Regard (Um Certo Olhar), À Deriva foi exibido pela primeira vez no Brasil no dia 9 de julho, abrindo o 2º Festival Paulínia de Cinema, fora da mostra competitiva. Por não ser um filme leve, destoou um pouco do clima de festa da abertura.

O FILME

À Deriva, de Heitor Dhalia. Com Vincent Cassel, Débora Bloch, Laura Neiva, Cauã Reymond, Camilla Belle

A grandeza das coisas miúdas


Assim como a poesia subverte o sentido das coisas e das palavras, a linguagem do documentário também reinventa a realidade. Afinal, qualquer recorte dos fatos se aproxima muito mais de uma versão do que uma verdade. E ninguém melhor para falar sobre as diversas versões para a realidade do que o poeta matogrossense Manoel de Barros, autor de 20 livros publicados, que se orgulha de suas “memórias inventadas” e diz que 90% do que escreve é invenção – nesse caso, é apenas a forma originalíssima com que vê as coisas ao redor e as retrata por meio da poesia.


Com o nome de Só Dez Por Cento é Mentira – A Desbiografia Oficial de Manoel de Barros, um documentário conseguiu o que parecia impossível: registrar, em audiovisual, uma longa entrevista com o poeta, que recusava qualquer tentativa de gravarem sua voz – para ele, “a palavra oral não dá rascunho” – e a quem interessava tornar público somente o “ser letral” pelo simples fato de o “ser biológico ser totalmente sem graça”.


O diretor Pedro Cezar (do genial documentário Fábio Fabuloso e que também é poeta) conseguiu a façanha após muitas tentativas e levou dois anos para realizar o filme. Foi ao soltar a frase “era só um sonho mesmo”, por telefone, diante de mais uma negativa de Barros, que ele ouviu o tão desejado sim.


Vencedor na categoria melhor documentário no 2º Festival Paulínia de Cinema, realizado do dia 9 a 16 de julho, Só Dez Por Cento é Mentira (saiba mais em www.sodezporcentoementira.com.br) deve chegar aos cinemas entre 4 e 11 de setembro, com distribuição da Downtown Filmes.


É impressionante a forma como o filme provoca nossos sentidos ao captar o universo de Barros por meio da câmera sensível, que instiga tanto o olhar criativo quanto o contemplativo sobre objetos, paisagens e pessoas. Imagens simples como um muro descascado ou um portão enferrujado ganham sentidos completamente outros quando somadas à música originalmente composta por Marcos Kuzka, com tablas, violas, violões e outros instrumentos (procure em www.myspace.com/sodezporcento) e aos versos do poeta, que se formam palavra por palavra na tela grande.


Não espere paisagens deslumbrantes do Pantanal emoldurando essa desbiografia. Tudo ali é mostrado nas miudezas e com certo humor, como é a poesia de Manoel de Barros, que está com 92 anos de idade e mora na área rural de Campo Grande. Em sua casa, há um espaço batizado por ele de “lugar de ser inútil”, que é onde escreve os poemas, tudo à mão, e confecciona as centenas de caderninhos de rascunho que coleciona.


A montagem dinâmica intercala depoimentos de artistas, críticos, amigos e parentes sem qualquer didatismo. Ainda com a preocupação de participar o espectador do processo de feitura do documentário, Pedro Cezar utiliza o recurso da narração em off ao longo de todo o documentário, sem desmitificar a figura do poeta, que diz não querer dar informações, mas encantamento. Afinal, “se os fatos não correspondem à vida, pior para os fatos”.